in
"Livros e Escritores - 1923"
|
«Leça era noutro tempo uma terra à parte no mundo, de ingleses
velhos, de poetas e de marítimos. Tinha um velho forte transformado em hotel,
ruas misteriosas e casas com degraus de pedra para os grandes portões
vermelhos, que nunca se abriam, e um fio de rio - o mais feliz do mundo - onde
a água corria devagar entre salgueiros, parando, cismando, reflectindo a camada
de folhas, umas verdes, outras de oiro. Vinha de cima dos pinheirais isolados e
acarretava folhas; vinha dos campos de milho e cheirava a bravio; vinha dos
açudes onde as lavadeiras cantam e trazia consigo o eco das risadas. Embalava o
barco do Montalvão, que, no fundo da caverna, sonhava, de barriga para o ar, a
mais bela obra do mundo. (...) Descia, estremecia (...), parava entre as
árvores que se fechavam em cima formando uma abóbada, e acabava em fim por
fazer mover o velho moinho de ao pé da ponte. (...) E sentia-se que o rio tinha
pena de acabar. Estava cheio de versos, de cantigas, de silêncio, entontecido e
quase humanizado. (...)
Hoje quase tudo isto desapareceu: por Leça passou um
terramoto. O rio, sem o Montalvão e sem as árvores, perdeu todo o encanto.
Tenho medo de lá tornar, como tenho medo de ir à Foz: por toda a parte vejo
fantasmas. (...) Só o mar inalterável conserva a mesma beleza e a mesma
tragédia.»
|